Para conhecer o espiritismo leia Kardec.Para conhecer Kardec, leia a Revista Espírita



É interessante notar que os espíritas, na maior parte das vezes, apresentam o pensamento de Kardec baseados no conhecimento de seus livros, com destaque para O livro dos espíritos, O evangelho segundo o espiritismo, O livro dos médiuns e A gênese. Entretanto, esses livros "básicos" são, na verdade, a síntese de um processo de construção e consolidação de uma filosofia. Para chegar a esse "corpo didático", representado pelos livros, há oculto um caminho desde o professor Rivail, pesquisador, educador, tradutor, intelectual cético ao Allan Kardec, pseudônimo que revela sua "revolução íntima" a partir do contato com os fenômenos espirituais. Na biografia escrita por Zêus Wantuil e Francisco Thiesen (pag. 38), há o seguinte trecho sobre Rivail educador: "Conforme assinalara a escritora inglesa Anna Blackwell, que o conheceu de perto, aquele espírito ‘ativo e tenaz’ era ‘precavido até quase a friez, céptico por natureza e por educação’.”

E ainda: "Aliás, cerca de 30 anos antes, quando Rivail tinha apenas 24 primaveras, sua preocupação científica e seu caráter eminentemente positivo o fariam escrever numa obra sobre a educação pública: "Aquele que houver estudado as ciências rirá, então, da credulidade supersticiosa dos ignorantes. Não mais crerá em espectros e fantasmas. Não mais aceitará fogos-fátuos por espíritos."

Mesmo após assumir o compromisso de organizar e discutir o que veio a chamar de "espiritismo", o caráter de pesquisa, perquirição e argumentações bem fundamentadas estiveram sempre presentes. Encontramos na Revisa Espírita parte desse percurso, bem como o pensamento mais abrangente de Kardec expresso na sua relação com o conhecimento formal, com outros pesquisadores, bem como discussões sobre os mais diversos assuntos correntes na época. Como exemplo desse "espírito pesquisador" e de sua luta para incluir a espiritualidade no campo da pesquisa séria e coerente, bem como a demonstração de sua preocupação com os rumos do movimento espírita, coloco aqui fragmentos de uma carta, publicada na Revista Espírita de fevereiro de 1862. Essa carta nos dá também uma idéia do homem Allan Kardec.


RESPOSTA DIRIGIDA AOS ESPÍRITAS LIONESES
POR OCASIÃO DO ANO-NOVO

"Agradeço-vos, meus bons amigos, os votos que formulais; eles me são tanto mais agradáveis quanto sei que partem do coração, e são estes que Deus ouve. Ficai satisfeitos, porque ele os acolhe diariamente, dando-me a alegria inaudita no estabelecimento de uma nova doutrina, de ver aquela a que me devotei crescer e prosperar, em meus dias, com extraordinária rapidez.

[...] No ponto em que hoje as coisas se acham, e levando-se em conta a marcha do Espiritismo através dos obstáculos semeados em seu caminho, pode-se dizer que as principais dificuldades estão vencidas. Ele tomou o seu lugar e assentou-se em bases que doravante desafiam os esforços de seus adversários.

[...] A tática já posta em ação pelos inimigos dos espíritas, mas que vai ser empregada com novo ardor, é a de tentar dividi-los, criando sistemas divergentes e suscitando entre eles a desconfiança e a inveja. Não vos deixeis cair na armadilha e tende como certo que aquele que procura, seja por que meio for, romper a boa harmonia, não pode estar animado de boas intenções. Eis por que vos exorto a guardar a maior prudência na formação dos vossos grupos, não só para a vossa tranqüilidade, mas no próprio interesse dos vossos trabalhos. A natureza dos trabalhos espíritas exige calma e recolhimento. Ora, não há recolhimento possível se somos distraídos pelas discussões e pela expressão de sentimentos malévolos. Se houver fraternidade não haverá sentimentos de malquerença; mas não pode haver fraternidade com egoístas, com ambiciosos e orgulhosos. Com orgulhosos, que se escandalizam e se melindram por tudo; com ambiciosos, que se decepcionam quando não têm a supremacia, e com egoístas que só pensam em si mesmos, a cizânia não tardará a ser introduzida e, com ela, a dissolução. É o que gostariam os inimigos e é o que tentarão fazer. Se um grupo quiser estar em condições de ordem, de tranqüilidade, de estabilidade, faz-se mister que nele reine um sentimento fraternal.

[...] Visando a desacreditar o Espiritismo, pretendem alguns que ele vai destruir a religião. Sabeis que é exatamente o contrário, pois a maioria de vós, que mal acreditáveis em Deus e na alma, agora crêem; quem não sabia o que era orar, ora com fervor; quem não mais punha os pés nas igrejas, a elas vão com recolhimento. Aliás, se a religião devesse ser destruída pelo Espiritismo, é que ela seria destrutível e o Espiritismo mais poderoso. Afirmá-lo seria falta de habilidade, porquanto seria confessar a fraqueza de uma e a força do outro. O Espiritismo é uma doutrina moral que fortalece os sentimentos religiosos em geral e se aplica a todas as religiões; é de todas, e não pertence a nenhuma em particular. Por isso não aconselha a ninguém que mude de religião. Deixa a cada um a liberdade de adorar Deus à sua maneira e de observar as práticas ditadas pela sua consciência, pois Deus leva mais em conta a intenção que o fato. Ide, pois, cada um, ao templo do vosso culto [grifo meu], e assim provareis que vos caluniam, quando vos acusarem de impiedade.

[...] Novos filhos na grande família, eles vos saúdam, companheiros de Lyon, como seus irmãos mais velhos, formando, desde agora, um dos elos da cadeia espiritual que já une Paris, Lyon, Metz, Sens, Bordeaux e outras, e que em breve ligará todas as cidades do mundo num sentimento de mútua confraternidade; porque em toda parte o Espiritismo lançou sementes fecundas e seus filhos se dão as mãos por cima das barreiras dos preconceitos de seitas, castas e nacionalidades. Vosso dedicado irmão e amigo,
Allan Kardec"
(Revista Espírita, fevereiro de 1862, pag. 58 a 65)

Aconselho que leiam essa carta na íntegra. Tantas são as orientações e os argumentos em favor de uma posição mais fraterna e coerente entre os espíritas, que se assemelham às epístolas de Paulo aos cristãos: são palavras atiradas ao futuro. Leia Kardec para entender o espiritismo, mas leia a Revista Espírita para entender Kardec.

A carta na íntegra
Saiba mais:
História da Revista Espírita
Relação entre Kardec e Pestallozzi

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