Em primeira pessoa


Por Cristina H. Rocha

Nos encontramos no ônibus. Não mais de 55 anos era sua idade. Bilhete sem crédito, cobrador sem troco. A mulher briga com o cobrador, por fim fica para descer pela frente. Senta ao meu lado. Puxa conversa. Ela me disse (para mim e para todos os passageiros):

-Depois que tive o câncer (tirei um pedaço do estômago) entendi que eu precisava me amar mais. Cuidar mais de mim, não me importar tanto com os outros. Não vou mais engolir nada (esfregando o dedo indicador na garganta). Foi por eu ser boazinha que tudo aconteceu. A gente fica dizendo amém para tudo, as pessoas abusam, a gente fica com raiva. Aí quando fica doente, cadê?  Ninguém quer saber. O povo parece que some. Mas aí a gente sabe quem é amigo de verdade. É nessas horas....

Não me lembro, acho que respondi um “pois é, né? ” empolgada que estava com minha leitura. Mais tarde me pus a refletir. Quantas vezes ouvi em palestras, workshops, vídeos, conversas, o mesmo que aquela senhora me disse? Por que razões apenas repetimos o que nos dizem, ou mais profundo ainda, acreditamos no “tanto dizer” dos outros? Para que colocamos em nossa alma tais superficialidades?

Quando eu estive com câncer, duvidei de tudo isso. E tive tempo de olhar, observar, sentir, aprender. A doença é para isso? Não sei. Não sou Guru, sábia ou sacerdotisa para afirmar o sim e o não, as causas, as origens nos meandros do passado, presente e futuro das dores, alegrias e complexidades de um ser humano.

Só poderia responder a essa senhora, dizendo como foi o processo para mim. 

"Cara senhora, o que apresento aqui é apenas um jeito de olhar.

Quando eu estive com câncer, entendi que talvez, de alguma forma, tenha ultrapassado meus limites emocionais, profundos, simbólicos, não sei se isso correu ou quando. Algo impreciso colaborou para levar meu sensível e vulnerável sistema imunológico à loucura. O câncer é isso afinal.

Esse estado despertou a consciência de que era preciso cuidar mais de mim, de minha saúde, meu modo de vida, meus hábitos em todos os sentidos. 

Também havia a necessidade de aprender a dizer, vez ou outra, um não a pessoas queridas. Isso apenas para estabelecer o limite entre eu e o outro ou definir até onde é permitida a ação do outro em minha vida.

Ah, claro! Consegui primeiro me conformar, depois de algum tempo aceitar, com tranquilidade, ouvir um não às minhas solicitações. “Você pode ir comigo à quimio hoje? ”. “Cris, hoje não dá”. “Ok posso te ligar na próxima? ”

Nunca achei necessário cobrar do outro reconhecimento ou gratidão. Ah, como isso se mostrou ainda mais forte para mim quando estive com câncer!  Se porventura algum dia ajudei alguém, que bom! Isso me deu força para lutar pela minha saúde, não me adoeceu.

Algumas pessoas podem ter se afastado, é verdade. Talvez, observar o limite entre a vida e a morte em pessoas próximas, as fez entrar em contato com a própria morte. Muitos não conseguem ou não sabem enfrentar essa situação. E se afastam. Isso nada reduz meu amor por eles.

Outros amigos, distraídos em seus afazeres e compromissos cotidianos, esqueciam, preenchiam suas agendas com outras coisas. Se fosse o contrário? Uma pessoa como eu, apaixonada pelo trabalho, com uma rotina apertada, não faria isso também? Para esses eu telefonava. Conversava sobre coisas importantes e amenidades. Pedia e aceitava ajuda, ainda que não viessem me oferecer. Eu os amo também.

O limiar da morte ressaltou aos meus olhos a importância de cada pessoa, cada momento. Assim, se houve pequenas ou grandes renúncias do passado em favor da paz ou da alegria de alguém, nunca me arrependi. Isso não me trouxe a doença, mas aumentou as vibrações, energias e mobilizou as  tantas pessoas que  me ajudaram a conquistar a cura.

Depois que estive com câncer, me tornei mais responsável com a saúde, mais bonita, mais objetiva e segura nas minhas decisões. 

Aprendi a dizer não, sem fazer disso um escudo ou uma arma. Valorizo hoje como nunca meus amores com suas características peculiares, sem intenção de converter ou convencer ninguém a ser desta ou daquela forma. Se coloco meu ponto de vista com certa ênfase (certas coisas não mudam) tento ser respeitosa, clara e objetiva. Se os que me conhecem  avaliarem que não é vem assim, posso garantir, isso tudo eu tento. A todos e a cada um sou imensa e profundamente grata.

Acima de tudo, querida senhora, companheira casual de viagem na vida e no ônibus, aprendi a celebrar. Celebro cada gota de água, cada prato de comida, cada abraço e cada beijo. Celebro as festas, as lutas, as emoções. Faço aniversário todos os dias. Sempre que posso, brinco, canto, viro criança, viro velha. Conto histórias, invento enredos, poemizo algumas vezes. Estudo as teorias e as coisas simples me atraem. Celebro o funcionamento de minhas células, as escolhas de cada dia. Celebro a família, os amigos, o amor. Como eu disse, senhora, é só um jeito de olhar."






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